A Universidade e os anos 1970
Andréa Cristina de Barros Queiroz*
A década de 1970 teve seu início sob o impacto do aumento da repressão militar sobre a sociedade brasileira, reflexo da decretação do Ato Institucional n.5, de 13 de dezembro de 1968, e do Decreto Lei n.477, de 26 de fevereiro de 1969, que contribuíram para promover um grande esvaziamento científico, intelectual, político e cultural nas universidades brasileiras, com a interrupção de diversos projetos e pesquisas por conta das expulsões de docentes, técnicos e estudantes das instituições de ensino e pesquisa em todo país, acusados de subversivos pela ditadura civil-militar. Tais instrumentos legais serviram para legitimar a perseguição e expulsão do corpo social das Universidades e Institutos de Pesquisa.
A UFRJ começou o ano de 1970 com cerca de 44 professores cassados, a sua maioria enquadrados pelo AI-5, e diversos estudantes expulsos pelo Decreto Lei n.477. Para os governos militares manterem o patrulhamento e o controle sobre o corpo social da Universidade foi importante a atuação de parte da comunidade acadêmica que não somente colaborou com o regime autoritário, delatando seus colegas de trabalhos e alunos, mas se beneficiou com cargos de gestão na administração pública, como foi analisado no texto sobre a década de 1960, com destaque para o professor Eremildo Luiz Vianna, ex-diretor da Faculdade Nacional Filosofia (1957-1963) e do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, durante quase todo o período da ditadura.
Devemos ressaltar que além da colaboração de parte da comunidade acadêmica, a estruturação desse aparato autoritário e coercitivo dentro das Universidades se consolidou, em 1971, com a criação de um organismo específico para monitorar, vigiar e levantar informações dentro de cada instituição de ensino superior. Eram as Assessorias Especiais de Segurança e Informação (AESIs). A sala da AESI na UFRJ funcionava ao lado do gabinete da reitoria, na Cidade Universitária. Destacamos que durante a ditadura civil-militar (1964-1985), a gestão da Universidade foi comandada pelos seguintes reitores: Pedro Calmon Moniz de Bittencourt (1951-1966); Raymundo Augusto de Castro Moniz de Aragão (1966-1969); Clementino Fraga Filho (outubro/1966-março/1967); Djacir Lima Menezes (1969-1973); Hélio Fraga (1973-1977); Luiz Renato Carneiro da Silva Caldas (1977-1981); Adolpho Polillo (1981-1985).
Sobre a relação de apoio e colaboração com a ditadura, cabe ressaltar que o reitor Moniz de Aragão foi um dos grandes defensores e idealizadores da reforma universitária de 1968. Além disso, foi Ministro da Educação e Cultura interino de 30 de junho a 04 de outubro de 1966. Ele também contribuiu para a criação do Conselho Federal de Cultura. Portanto, a fim de propagar os ideais da cultura política autoritária do regime, havia a necessidade de assegurar, por meio da educação e da cultura, os conteúdos de civismo a serem disseminados na Universidade, especialmente com a disciplina de Estudos de Problemas Brasileiros (EPB). Como destacou Tatyana Maia (2014, p.55), entre 1971 e 1980, através do Fórum de Ciência e Cultura (FCC) da UFRJ, foi organizado o “Curso de atualização sobre problemas brasileiros”, proposto pelo reitor Pedro Calmon como solução provisória à inexistência de um curso superior de EPB. O curso foi organizado em conferências temáticas, editadas pela UFRJ na publicação Cadernos de Estudos Brasileiros, sob o comando de Moniz de Aragão. Entre os principais conferencistas do curso estavam os três reitores da Universidade que também eram conselheiros no CFC: Moniz de Aragão, Djacir Menezes e Pedro Calmon. Salientamos que o acervo referente à documentação dessas conferências encontra-se na Biblioteca Pedro Calmon do Fórum de Ciência e Cultura integrada ao Sistema de Bibliotecas e Informação da UFRJ, no campus da Praia Vermelha.
Com base nestas evidências podemos perceber que personagens importantes da comunidade acadêmica da Universidade participaram, negociaram e colaboraram com o regime autoritário. Se houve oposição e resistência, de um lado, sobretudo, com o movimento estudantil e com os movimentos sociais liderados por servidores (técnicos e docentes) para o retorno dos expulsos da Universidade no pós-1979 com a Anistia; também houve colaboração e negociação com a ditadura, do outro, especialmente por parte dos dirigentes da instituição e da parcela conservadora dos docentes e técnicos que apoiavam o regime autoritário. Assim, nos deparamos com uma das seletividades da memória dentro da Universidade, pois durante muito tempo houve um esquecimento que parte da comunidade acadêmica colaborou com o regime, e no bojo da Anistia no pós-1979 e com a redemocratização se consagrou uma narrativa de reconciliação com o passado, como se na Universidade, grosso modo, todos se empenharam na luta pela redemocratização. (QUEIROZ, 2021, p.187-188)
Foi na gestão do reitor Djacir Menezes que personalidades políticas da ditadura foram agraciadas com o título de Doutor Honoris Causa, como o general presidente Emilio Garrastazu Medici (1969-1974) e o seu ministro da Educação Jarbas Passarinho. Lembramos que foi na gestão de Médici que as obras da Cidade Universitária foram retomadas e reinauguradas, após várias interrupções em virtude de diversas crises financeiras e políticas quando o Rio de Janeiro deixou de ser a capital federal. Vale destacar que a Cidade Universitária foi inaugurada, em 1953, no governo de Getúlio Vargas (como foi analisado no texto sobre a Universidade e os anos 1950), mas se disseminou de forma intencional na memória de quem apoiou o governo que a Cidade Universidade foi um projeto da ditadura civil-militar. (QUEIROZ, 2021).
Seja como for, se houve colaboração com a ditadura entre alguns grupos conservadores dentro da Universidade, também houve entre o corpo social aqueles que resistiram e se oposuram ao regime autoritário, além do Movimento Estudantil, destacamos a incipiente organização sindical dos servidores, desempenhando um importante papel para a campanha de retorno dos expurgados de volta à Universidade. Em 26 de junho de 1979, a Associação de Docentes da UFRJ (AdUFRJ) realizou uma cerimônia simbólica para reintegrar os professores cassados e, no final de 1979, após a Lei de Anistia (lei n° 6.683, de 26 de agosto de 1979), a Universidade promoveu a reintegração efetiva dos professores.
Não podíamos terminar este texto sem fazer a lista de presença dos professores cassados da UFRJ pela ditadura civil-militar (QUEIROZ, 2018, p.16):
- Abelardo Zaluar
- Alberto Coelho de Souza
- Álvaro Borges Vieira Pinto
- Alvércio Moreira Gomes
- Antonio Cláudio Leonardo Pereira Sochaczewski
- Aryma Cavalcanti da Costa Santos
- Augusto Araújo Lopes Zamith
- Carlos Nelson Coutinho
- Darcy Ribeiro
- Durmeval Trigueiro Mendes
- Elisa Esther Frota Pessoa
- Eulália Maria Lahamayer Lobo
- Evaristo de Moraes Filho
- Fernando Braga Ubatuba
- Francisco Mangabeira
- Guy José Paulo de Holanda
- Heleno Cláudio Fragoso
- Hermes Lima
- Hugo Regis dos Reis
- Hugo Weiss
- Jayme Tiomno
- João Cristóvão Cardoso
- José Américo da Mota Pessanha
- José de Lima Siqueira
- José Leite Lopes
- José Stamato
- Josué Apolônio de Castro
- Lincoln Bicalho Roque
- Luiz Gonzaga de Paiva Muniz
- Manoel Isnard de Souza Teixeira
- Manoel Maurício de Albuquerque
- Maria Laura Mouzinho Leite Lopes
- Maria Yedda Leite Linhares
- Mário Antonio Barata
- Marina São Paulo de Vasconcellos
- Max da Costa Santos
- Moema Eulália de Oliveira Toscano
- Oswaldo Herbster de Gusmão
- Plínio Sussekind da Rocha
- Quirino Campofiorito da Rocha
- Roberto Pompeu de Souza Brasil
- Sarah de Castro Barbosa
- Victor Nunes Leal
- Wanderley Guilherme dos Santos
*Historiadora da UFRJ; Doutora em História Social (UFRJ); e Diretora da Divisão de Memória Institucional/SIBI/UFRJ.
Referências
MAIA, Tatyana de Amaral. Os intelectuais no Ministério da Educação e Cultura em tempos autoritários (1966-1982). In: CORDEIRO, Janaína et al (org.). À sombra das ditaduras: Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Mauad, 2014, p.51-65.
QUEIROZ, Andréa Cristina de Barros. A memória institucional e os impactos da repressão na UFRJ (1964-1985). Anais do Encontro Internacional e XVIII Encontro de História da Anpuh-Rio: História e Parcerias. Niterói: UFF, 2018. Disponível em: https://www.encontro2018.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1529704709_ARQUIVO_TextoANPUH-RIO-AndreaQueiroz.pdf. Acesso: 18 jun. 2021.
QUEIROZ, Andréa Cristina de Barros Queiroz. As memórias em disputa sobre a ditadura civil-militar na UFRJ: lugares de memória, sujeitos e comemorações. Tempo. Niterói: PPGH/UFF, v. 27 n. 1, p. 184-203, jan./abr. 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tem/a/4C4LQnGsWBPdGtfBSt6GfNg/?lang=pt. Acesso: 18 jun. 2021.
Fontes
Imagem 1 - Professores cassados retonam para UFRJ, Auditório do CT, 1979. Acervo ADUFRJ.
Imagem 2 - A Universidade no Sesquicentenário da Independência, 1972. Coleção Memória UFRJ, Biblioteca Pedro Calmon.
Imagem 3 - Coleção Estudos de Problemas Brasileiros, Biblioteca Pedro Calmon.
Imagem 4 - Médici: chega de palavras (sobre as obras da Cidade Universitária). Correio da Manhã, 21 jan. 1970. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Imagem 5 - MEC vai reaver as cassações das Universidades. JB, 23 mai. 1979. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Imagem 6 - Placa de inaguração do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, acervo HUCFF.